sexta-feira, 6 de agosto de 2010

História e memória do tempo dos Assecas

   A antiga fazenda do Visconde de Asseca, cuja descendência brigou, por muitos anos e jornadas, contra os fazendeiros e posseiros liderados pela heroína Benta Pereira, e sua filha Mariana Barreto, está perdida no meio do avanço urbanístico do bairro que leva o seu nome e se conurba com Donana, portal da Baixada, aonde estão vivas no imaginário popular as sanhas do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, personagem do escritor José Cândido de Carvalho. De toda geografia da imensa pradaria onde o sol não tem como se esconder (e assim assevera os verbos amantes de Azevedo Cruz) restou apenas a Capela de Nossa Senhora do Rosário, padroeira da fazenda extenuada pelo tempo responsável pelos avanços das novas tecnologias de produção capitalista. É o mais antigo e importante dos templos por inserir nas terras goytacazes a ritualidade do cristianismo barroco, por ação competente dos prelados jesuítas. Para os lados do Itaoca, há, ainda, resquícios da cana-de-açúcar mantida por algum sitiante teimoso e que não percebeu, ainda, o lamento final de seu ciclo que, durante mais de três séculos alimentou a escravidão e os poderosos senhores de engenhos. Pelos aceiros, além de um produto mirrado, sem maior grau de sacarose, muito mato, um gado ruminando na engorda e a ausência da casa grande, do bangüe e do correr-de-casas – lugar-senzala da escravada. SER E TEMPO – Hoje, em toda a região, outrora apinhada de engenhocas e usinas, somente a São José, perto dalí, mantém fumegando suas torres, sinal de que a gula de suas moendas está sendo alimentada, apesar da dificuldade de se conseguir matéria-prima. A única testemunha viva do apogeu da Fazenda do Visconde, assim mesmo por ouvir dizer, é Benedito Bastos, 88 anos registrando as mudanças na paisagem verdejante e nos costumes ancestrais. Revelou ser, ainda, administrador da “fazenda”, da família do Dr. Paulo Carneiro. O neto Rodrigo Bastos, 23, auxilia o avô contando coisas de memória. A casa grande ficava à direita, cerca de 500 metros da capela, quase junto à antiga estrada de São Gonçalo. As senzalas desciam pelo além do cercado, planejado no lado norte da igrejinha. Tinha árvores frondosas, currais para o gado e até mesmo lugar destinado à reprodução de negros e a fortuna dos senhores. No interior da capela, de barroco português, existe um clima sacro, embora as imagens miúdas se percam nos oratórios suntuosos. Mas vem sendo usado, ainda, o elevado do coro e consistório, púlpito e altar para missas tridentinas e seteiras contra ataques dos nativos. Todo domingo tem missa no santuário e os cânticos são únicos e não competem, mais, com o batuque dos jongos da negada se divertindo na porta das senzalas. Benedito lembrou-se das 77 festas realizadas enquanto zelador de Nossa Senhora do Rosário. “Muitos foram os que contribuíram”. Citou o fazendeiro Nilto Fonseca, da região do Cundo, “pessoa amiga que a irmandade muito deve pela dedicação durante muitos anos”. Este ano as festas serão nos dias 29, 30 e 31 de outubro. “A data cerca é 7 de outubro, mas as festas coincidem com a data em que a santa foi entronizada no altar”. - Há duas imagens originais guardadas a sete chaves. Se deixarmos aqui podem ser roubadas por colecionadores. Só na procissão é que a importante peça sacra é mostrada aos fiéis – lembra Rodrigo, enquanto ajuda no recolhimento de adobes gigantes saídos do solar do Visconde, demolido nos anos 50, “quando era prefeito José Alves de Azevedo, que começou a vida como padeiro e era filho do amigo João Carusinho”, acrescenta Benedito Bastos. MEMÓRIA – Pintada de branco e janelas azuis, a capela, tombada pelo IPHAN, mantém um jardinzinho singelo carecendo de mais trato. Uma quaresmeira oferece aos visitantes buquês lilás de sua produção de inverno. O céu abre cortinas cinzentas e mostra um azul sem igual no mundo e de todas as palmeiras, (marca do poderio dos barões, condes e viscondes) testemunha de dramas e conquistas, restou apenas uma com suas palmas erguidas para céu em ato penitente. Nos antigos massapês nascem prédios e estradas. Não vai demorar muito e a história será outra que a contemporaneidade decidir ser mais importante. Todavia, pode-se perceber a aura de um lugar tecido pelo imaginário: Aceiros apinhados de escravos, senhores caminhando ao lado das sinhás, cambonas puxando canas pros bangüês e ladainhas singelas cantadas por madonas. Dos assecas, por enquanto, só restou a memória, que também pode ser esquecimento.

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